LMT#105: Vila C de Itaipu, Foz do Iguaçu (PR) – Endrica Geraldo



Endrica Geraldo
Professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana




A Vila C, em Foz do Iguaçu, é um lugar de memória de muitos dos trabalhadores que participaram da construção da Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu. Foi planejada para abrigar temporariamente famílias operárias: ao final das obras, essas pessoas seriam dispensadas e as casas seriam demolidas. Com muita luta, várias famílias transformaram essa realidade e garantiram a permanência da vila, consolidando suas vidas nessa região de Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai, Argentina).

A Usina Hidrelétrica de Itaipu está localizada no Rio Paraná, na divisa entre Foz do Iguaçu, no Paraná, e o distrito de Hernandarias, nas proximidades de Ciudad del Este, no Paraguai. Em 1974, a Itaipu Binacional foi formalmente constituída como empresa, e a construção da então maior hidrelétrica do planeta teve início em 1975. As obras da barragem seguiram até 1982 e a primeira unidade geradora entrou em operação em 1984. Até 1991, ocorreu a construção da casa de força e a instalação de 18 das atuais 20 unidades geradoras. Para as obras foram contratados consórcios brasileiros e paraguaios de construtoras e de montagem eletromecânica. Durante boa parte desse período, o Paraguai esteve sob a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), e o Brasil, sob a ditadura Civil-Militar (1964-1985). Um complexo sistema de vigilância, controle e repressão de ambos os países atuava na empresa. Espionagem, agentes infiltrados e presença de delatores permearam o cotidiano dos trabalhadores e seus esforços de organização.

A construção tornou necessário o deslocamento de dezenas de milhares de trabalhadores vindos de diferentes regiões nos dois países (e mesmo de outros países). No Brasil, naquele período, grandes obras do setor elétrico estavam em fase de conclusão e muitos “barrageiros” vieram para trabalhar na Itaipu. Mas as propagandas atraíram também muita gente com pouca ou nenhuma experiência na construção civil, inclusive trabalhadores rurais. Os homens foram a grande maioria dos contratados, mas diversas mulheres trabalharam em funções como professoras, assistentes sociais e enfermeiras.

Para atrair e acomodar tanta gente, foram erguidas, entre 1975 e 1979, 11 vilas habitacionais nos dois países, além do alojamento localizado no canteiro de obras. O número de residências aumentou ao longo do tempo, totalizando cerca de 9.500 casas: no lado brasileiro (Vilas A, B e C), foram mais de cinco mil; no lado paraguaio (Áreas 1 a 8), mais de quatro mil. Os alojamentos construídos no canteiro de obras possuíam a capacidade de hospedar cerca de doze mil trabalhadores.

No lado brasileiro, administradores e engenheiros, assim como técnicos e funcionários administrativos, tinham acesso aos melhores refeitórios, serviços e as duas vilas (Vilas A e B) que foram planejadas para permanecerem após o término da construção como moradia dos responsáveis pela operação e manutenção da usina. Por sua vez, a Vila C abrigou os trabalhadores considerados de menor qualificação (carpinteiros, pedreiros, mestres de obra, eletricistas, etc), contratados pelos consórcios brasileiros.


A Vila C foi planejada como temporária, com 2.900 casas: deveria abrigar “os peões” e seus familiares durante a construção, mantidos próximos à usina e distantes da malha urbana do município. A expectativa era de que, finalizada a obra, esses operários seriam demitidos e partiriam em busca de trabalho em outras barragens. Por essa razão, os materiais de construção das casas eram precários e com condições que intensificavam o calor e a pouca privacidade.


Construída em etapas, ela terminou dividida entre a chamada Vila C Nova e a Velha. Distante do restante da cidade, a Vila C contava com escola, ambulatório, igreja, espaços de lazer, campo de futebol, Centro Comunitário e um centro comercial. Por um lado, os operários percebiam a vila e os serviços como uma melhoria nas suas condições de vida. Por outro, reconheciam a desigualdade com relação ao que era oferecido aos outros trabalhadores da empresa e dos consórcios e, especialmente, sofriam a angústia de saber que seria passageiro e que, em pouco tempo, perderiam o emprego e os “benefícios”. Nestes espaços, cresceu o companheirismo com vizinhos e moradores, marcado por relações de solidariedade, identidade de classe e pela luta por direitos. Durante o período da redemocratização política do país, a região viu surgir os primeiros sindicatos, entre eles o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Foz do Iguaçu, fundado em 1986. A Vila abrigou assembleias de operários e, nas mobilizações e greves promovidas entre 1986 e 1987 chegou a ser cercada por tropas militares.

A construção da Itaipu contribuiu para que a população de Foz do Iguaçu quadruplicasse em 10 anos. Assim, por problemas habitacionais e por pressão dos operários (inclusive com a prática de invasões e ocupações), na metade da década de 1980 já se anunciava que a Vila C não seria mais demolida. As casas começaram a ser vendidas em 1992, com preferência para os moradores, trabalhadores ou ex-trabalhadores da Itaipu e das empreiteiras. Para muitos, foi a primeira oportunidade de ter uma casa própria.

A Vila C atualmente abriga famílias de homens e mulheres que trabalharam arduamente na construção da usina e que conquistaram o direito de permanecer. Ela marcou a vida de muitos/as trabalhadores/as que hoje criam e participam de coletivos dedicados ao compartilhamento de memórias e divulgação da história da Vila.

Time de futebol da Vila C.
Fonte: Informativo UNICON, 29 Janeiro de 1982.


Para saber mais:

  • GONÇALVES UEDA, Eduardo; GERALDO, Endrica. A Farda e o Fardo: Memórias sobre o mundo do trabalho na construção da Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu (1975-1991). Revista Latinoamericana de Trabajo y Trabajadores, v. 1, 2020.
  • JESUS, Rodrigo Paulo de. De “Vila Operária” a bairro dos trabalhadores: processo de constituição do bairro Vila “C” – 1977 a 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2009.
  • MARARIN, Odirlei. Peões da barragem: memórias e relações de trabalho dos operários da construção da hidrelétrica de Itaipu – 1975 a 1991. 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2008.
  • SESSI, Valdir. “O povo do abismo”: trabalhadores e o aparato repressivo durante a construção da hidrelétrica de Itaipu (1974-1987). 2015. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Educação e Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Rondon, 2015.
  • Site: https://partilhandomemorias.foz.br/ – site do projeto de extensão “Memórias Subterrâneas – produção de acervo e espaços de diálogo sobre cotidiano, violência e resistência dos trabalhadores de Foz do Iguaçu” (UNILA, PR)

Crédito da imagem de capa:   Foto aérea da Vila C”, (Fonte: Itaipu Binacional, 1975/1979 apud RAMMÉ, 2020, p. 155)
RAMMÉ, Juliana. A compreensão da urbanidade pela morfologia urbana: as vilas de Itaipu. 2020. Tese (Doutorado em Arquitetura, Tecnologia e Cidade) – Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#104: Escola de Samba Império Serrano, Rio de Janeiro (RJ) – Alessandra Tavares



Alessandra Tavares
Professora da Educação Básica e Doutora em História pela UFRRJ



Quem acompanha os desfiles das escolas de samba sabe que a força de uma agremiação está no seu chão. A comunidade de cada escola de samba é a raiz, que compõe sua identidade e pertencimento com a região de sua origem. Fundado em 1947, o Grêmio Recreativo Esportivo Escola de Samba Império Serrano, fez sua trajetória no morro da Serrinha, no bairro de Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro. O Império Serrano foi composto pelas últimas gerações de ex-escravizados e seus descendentes, que migraram do Vale do Paraíba e, sobretudo, pelos trabalhadores do porto do Rio de Janeiro e suas famílias. As regiões recortadas pela linha férrea, como Madureira, foram opções de moradias baratas para muitos trabalhadores no Rio de Janeiro desde o início do século XX, incluindo muitos estivadores e portuários em geral.           

A fundação do Império Serrano remete à dissidência da escola de Samba Prazer da Serrinha, representante dos moradores do morro nos desfiles de carnaval no início da década de 1930. Um grupo de jovens descontentes com a direção da Prazer da Serrinha, formou uma nova escola. Fundada em 1947, a Império Serrano, com sede na rua da Balaiada 133, foi gestada nas casas das famílias do morro da Serrinha, sob liderança dos trabalhadores portuários que moravam na região. Embora sua sede original tenha desabado devido a um forte temporal, na década de 1960, e hoje esteja localizada em uma das vias centrais do bairro de Madureira, o seu chão e lugar de memória é o morro da Serrinha.


A primeira diretoria da nova escola de samba foi composta com a predominância de operários filiados ao Sindicato do Trabalhadores em Trapiche e Café, também conhecido como Sociedade da Resistência dos Homens Pretos.


A Sociedade de Resistência foi fundada em 1905, sob o “auspício” do Sindicato dos Estivadores do Porto do Rio de Janeiro (1903), que até aquela data aglutinava diferentes modalidades de trabalho na região. Embora o trabalho da estiva seja uma modalidade específica executada dentro das embarcações, entrou no jargão dos trabalhadores portuários do Rio de Janeiro a autoidentificação como estivador ou simplesmente operários do cais do Porto. Uma identidade profundamente alçada na historicidade do trabalho na região e na força mobilizadora de seus sindicatos, que controlavam a oferta da mão de obra e os preços dos serviços, em uma relação conhecida como “closed shop”.  

O ingresso à Sociedade de Resistência se dava pela indicação de um membro ou pela hereditariedade, que era avaliada em reuniões e condicionada a um tempo de experiência no trabalho para a aprovação definitiva. O controle do acesso ao sindicato através de indicações fortaleceu o peso das relações familiares e a predominância de homens negros em seus quadros, como nos casos dos Oliveira, Feliciano e Dias, famílias moradoras do Morro da Serrinha que participaram da fundação do Império Serrano.       

Em 1947, ano de fundação do Império Serrano, a Sociedade da Resistência era um sindicato consolidado e estava em vias de construção de sua sede própria, um imenso prédio na rua do Livramento. Além de espaço de mobilização e organização da categoria, a sede ficaria na memória coletiva dos moradores da região portuária e do morro da Serrinha como um lugar de festas e diversões.

Nessa época o presidente do sindicato era Eloy Anthero Dias, o Mano Eloy, Sambista pioneiro, incentivador da fundação de escolas de samba e morador das redondezas do morro da Serrinha. Frequentador dos jongos e lazeres da região, suas experiências como presidente do sindicato e com o carnaval das escolas de samba foram fundamentais para a construção de uma agremiação com forte inspiração na valorização das redes familiares e no associativismo como forma de desenvolvimento local e na busca de um espaço democrático para os saberes presentes na escola de samba. Até o fim de sua vida, em 1971, Mano Eloy participou ativamente do Império Serrano.

Mesmo tendo iniciado seus desfiles mais de uma década após o início do campeonato oficial de escolas de samba, o “Reizinho de Madureira”, como o Império Serrano é conhecido, entrou na história do carnaval carioca como um dos maiores vencedores dos desfiles, com nove títulos de campeão no Grupo Especial e quatro no Grupo de Acesso. Atribui-se a sua vitória nos quatro primeiros campeonatos (1948, 1949, 1950, 1951) aos recursos advindos das relações com os trabalhadores do porto. Parte do salário dos associados do sindicato eram destinados ao Império Serrano em troca do passe livre dos trabalhadores nas festas promovidas pela escola de samba.

A relação entre o sindicato e o Império Serrano faz parte das memórias cantadas em letras de sambas. Expressões como “resistência”, “luta pela liberdade” e “democracia” são recorrentes nas músicas da escola, como foi o caso do enredo de 2001, “O Rio corre pro mar”, em que Arlindo Cruz e outros compositores do Império homenagearam o porto e os trabalhadores da estiva.

As memórias do morro da Serrinha, do Império Serrano e do próprio carnaval carioca estão permeadas de atravessamentos entre a escola de samba, o sindicato e os trabalhadores e trabalhadoras da região portuária do Rio de Janeiro. São lugares de memória dos lazeres e do trabalho, forjados por pessoas negras no pós-abolição e ao longo de todo o século XX que impactam até os dias de hoje a história da cidade e do país.

Sebastião Oliveira , trabalhador portuário, membro da Sociedade de Resistencia e fundador do Império Serrano.
Fonte :  Arquivo público do Estado de São Paulo



Para saber mais:

  • BARBOSA, Alessandra Tavares de Souza Pessanha.  A Escola de Samba “Tira o Negro do Local da Informalidade”: Agências e associativismos negros a partir da trajetória de Mano Eloy  (1930-1940). Tese (doutorado) UFRRJ: Seropédica, 2018.
  • CRUZ, Maria Cecília Velasco. Tradições Negras na Formação de um Sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café.  Rio de Janeiro, 1905-1930. Afro-Ásia, 24 (2000), 243-290.
  • GALVÃO, Olívia Maria Rodrigues. A Sociedade de Resistência ou Companhia dos Pretos: um estudo de caso entre os arrumadores do Porto do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ/IFCS. 1994.
  • VALENÇA, Rachel Teixeira. VALENÇA, Suetônio Soares. Serra, Serrinha, Serrano: O Império do samba. Rio de Janeiro: J. Olympio. 2016.
  • Museu Virtual do Império Serrano. Império Serrano Museu Virtual (@imperioserranomuseuvirtual) • Fotos e vídeos do Instagram

Crédito da imagem de capa: Festa do título de 1982, na sede atual. Fonte : Jornal do Brasil, 26 fevereiro de 1982


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#103: Palacete Santa Helena, São Paulo (SP) – Patrícia Freitas



Patrícia Freitas
Professora do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo



“Em 1922, enquanto filhos da aristocracia, viajados e formados, brincavam de vanguarda europeia (o que acabou dando sérios e importantes resultados), o imigrante operário decorava casas e nem sequer se informava do que ocorria nas escadarias e interiores do Teatro Municipal.” Assim Alfredo Volpi descreveu a Semana de Arte Moderna de 22, não com as pompas com as quais em geral esse evento é retratado, mas do ponto de vista de quem, como ele, ficou do lado de fora. Mas o que havia, ou quem estava, neste “lado de fora”?

No cenário cultural paulista dos anos 20 e 30 proliferavam por toda a cidade novas construções feitas ao gosto de uma burguesia ascendente. Enriquecidos pelo comércio de café e por uma incipiente industrialização, essa classe buscava orientar-se por um novo gosto decorativo, alinhado às tendências do art nouveau e art déco. Assim, cresceu o número de artistas que se dedicavam às chamadas artes decorativas, muitos deles imigrantes europeus. Por não trabalharem com as belas artes (pintura e escultura), estes artistas eram considerados “menores” e muitas vezes nem eram chamados de artistas.

Se o lugar de memória da Semana de 22 está intimamente ligado ao Theatro Municipal de São Paulo, para o caso dos artistas que trabalhavam com decoração, seria outro o seu edifício-manifesto: o Palacete Santa Helena. Inaugurado em 1925, o Palacete, propriedade do ex-governador Manuel de Albuquerque Lins, foi projetado pelo arquiteto italiano Giacomo Corberi e construído pela empresa da família Asson. Era considerado um dos mais luxuosos edifícios do centro paulistano, que rapidamente passava por um processo de verticalização, deixando para trás os vestígios do passado colonial da cidade.

O Santa Helena foi projetado para o comércio e os serviços, sendo constituído por lojas no andar térreo, sobrelojas e pavimentos superiores contendo salas de escritórios, além de um cine-teatro. Os construtores apostavam no crescimento da vida cultural da cidade. Nos anos que se seguiram à sua inauguração apresentaram-se, sobretudo, nomes da música caipira como Cornélio Pires e o duo Jararaca e Ratinho. O conjunto arquitetônico luxuoso do cine-teatro convivia deste modo com as temáticas populares e refletia a situação não apenas do Palacete Santa Helena, mas do centro da cidade de um modo geral.

Localizado ao lado dos terminais de ônibus das Praças da Sé e Clóvis Bevilacqua, e contando com um grande número de pequenas salas com aluguéis relativamente baratos, o edifício logo se tornou atrativo para iniciativas e grupos populares. Várias associações políticas e entidades culturais e sociais eram ali localizadas.


O Palacete Santa Helena abrigava as sedes dos sindicatos dos trabalhadores metalúrgicos, comerciários e das artes plásticas. Na conturbada década de 30, organizações ligadas à Aliança Nacional Libertadora (ANL) ocupavam salas do edifício. Também era no Santa Helena que funcionavam populares academias de pugilismo, como as de Kid Pratt e da família Zumbano.


Foi nesse efervescente ambiente de debate político e vida social que se firmaram em dois ateliês alugados em 1934 os artistas que ficaram conhecidos por Grupo Santa Helena. Nomeado em homenagem ao edifício, o grupo era formado, sobretudo, por imigrantes ou descendentes, que trabalhavam com decoração e começavam a expor pequenos quadros em Salões da capital. Volpi era um desses artistas, assim como Francisco Rebolo Gonçalves, Aldo Bonadei, Clóvis Graciano, Mário Zanini, Manoel Martins, Humberto Rosa, Alfredo Rullo Rizzotti e Fulvio Pennacchi. O fato destes artistas estabelecerem-se no Palacete Santa Helena deu a eles uma espécie de identidade anti-modernista. Enquanto os modernos de 22 eram vistos como uma elite ilustrada e viajada, os santelenistas foram identificados como artistas humildes e autodidatas, que buscavam nada mais do que viver de sua arte. 

Críticos influentes, como Mário de Andrade e Sérgio Milliet, se referiam a esses artistas como artesãos ou operários, e isso era associado às origens imigrantes, trabalho com ofícios e sua posição como coletivo dentro do Palacete Santa Helena. Eram lidos por essa chave e não raro apareciam nos textos da imprensa termos pouco usuais no campo das artes, tais como “labuta”, “trabucar” e “vida proletária”.

O Grupo Santa Helena dialogava diretamente com a  ânsia intelectual dos anos 30 por uma arte socialmente engajada. Já não funcionava mais voltar-se para os dilemas estéticos das vanguardas europeias, mas sim buscar o lugar próprio do homem social brasileiro. E o Palacete Santa Helena serviu como esse espaço de construção simbólica. Sua importância na narrativa da história da arte em São Paulo é fundamental porque nos permite entender a dimensão social do trabalho do artista, aquilo que, de uma certa forma, apagou-se ao longo da história: a mão do artista como a mão do trabalhador.

Entre 1934 e 1945, o Grupo foi deixando o Palacete à medida que cada artista desenvolvia sua carreira solo. Muitos dos sindicatos e associações também saíram do edifício. Em 1944, o prédio foi vendido para o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), mantendo, de uma outra forma, seus vínculos com os mundos do trabalho. Em 1971, o Palacete Santa Helena foi demolido para a construção das linhas e da Estação do metrô da Praça da Sé. Permanece, no entanto, como lugar simbólico de onde derivam importantes sentidos para o entendimento da modernidade e da história do trabalho no Brasil.



Para saber mais

  • CAMPOS, Candido Malta (org.). Palacete Santa Helena: um pioneiro da modernidade em São Paulo. Editora Senac São Paulo: São Paulo, 2006.
  • FREITAS, P. M. S. O grupo santa helena e o universo industrial paulista (1930-1940). URBANA: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Campinas, v. 3, n. 1. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635125.
  • SEGAWA, Hugo. Prelúdio da metrópole: arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX e XX. São Paulo: Ateliê, 2004.
  • ZANINI, Walter. A arte no Brasil nas décadas de 1930-40: O Grupo Santa Helena. São Paulo: Nobel, 1991.

Crédito da imagem de capa:  Vista frontal do Palacete Santa Helena, c. 1930. Arquivo pessoal do professor Claudio Lembo.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#102: Vila da Palha, Rurópolis (PA)- Magno Michell Marçal Braga



Magno Michell Marçal Braga
Professor do Instituto Federal de Alagoas



“O povo brasileiro responde ao desafio da história ocupando o coração da Amazônia”. Com estas palavras, o então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici inaugurou em 12 de fevereiro de 1974 a Rurópolis batizada com seu próprio nome, localizada no Pará. A Rurópolis Presidente Médici foi fundada no entroncamento da BR 163, Cuiabá – Santarém e BR 230, Transamazônica, as duas grandes rodovias previstas no Programa de Integração Nacional (PIN), uma das principais políticas do governo militar. O modelo de desenvolvimento pretendido pela ditadura para a região da Transamazônica previa a criação de Agrovilas, Agrópolis e Rurópolis. Essas últimas, seriam o ponto alto do modelo de urbanismo pretendido, com serviços bancários, escolas e hospitais. Apenas a Rurópolis Presidente Médici, no entanto, foi inaugurada em um evento que contou com a presença de várias autoridades e teve ampla cobertura da imprensa.

A Transamazônica representava muito mais do que um projeto de estrada. Sua construção buscava materializar um grande programa de colonização na Amazônia e transformação de um território. A rodovia era apresentada nas propagandas oficiais como símbolo do “progresso e da segurança nacional” e como um grande projeto nacionalista que resolveria os problemas sociais da região.

Neste projeto, a colonização daquela vasta região seria feita por trabalhadores/as migrantes nordestinos e sulistas, incentivados a trabalhar na expansão da fronteira agrícola. Estava implícita a concepção de que a presença do elemento branco e “evoluído” nortearia o progresso da região. Ainda hoje é comum ouvir histórias de favorecimento de sulistas em detrimento dos nordestinos no que diz respeito ao acesso de bons lotes e crédito para produção. Além disso, há um apagamento da presença indígena nos relatos oficiais, apesar da larga utilização do trabalho dos povos originários locais nas construções naquela região.  

Os primeiros colonos, que foram trazidos oficialmente pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), obtiveram os lotes de terra mais próximos da rodovia. Já as famílias candidatas à colonos que chegaram atraídas pela propaganda, mas fora do programa oficial, acabavam se instalando nos lotes mais distantes ou se aglomeravam nas imediações de Rurópolis, à espera do tão sonhado pedaço de terra. O PIN também previa que parte dos trabalhadores migrantes mobilizados para a construção das rodovias pudessem fixar-se na região, transformando-os em colonos.

A cidade planejada Rurópolis Presidente Médici era destinada apenas aos prédios de instituições públicas e dos prestadores de serviços, além das moradias dos funcionários dessas instituições Era proibida a construção de novas casas sem autorização das autoridades governamentais. As numerosas famílias do Nordeste e do Sul que chegavam eram obrigadas a improvisar habitações nas margens da rodovia e da cidade planejada.


O principal local dessas moradias precárias ficou conhecido como Vila da Palha. As moradias da vila eram construídas com madeira das sobras da cidade planejada, sacos de cimento utilizado na obra e palha da floresta.


As mulheres e as crianças costumavam ficar na Vila da Palha, onde, além de se sentirem mais seguras, eventualmente era possível ganhar algum dinheiro prestando serviços para os moradores da cidade planejada. Os homens adentravam a mata para abrir as picadas que permitissem chegar aos lotes. Muitas vezes este trabalho ocorria de maneira coletiva, com as diferentes famílias ajudando-se mutuamente para abrir picadas, construir pontes, derrubar a mata e construir casas nos lotes.

Às vésperas da inauguração oficial da Rurópolis Presidente Médici as autoridades locais decidiram que aquela ocupação não planejada poderia manchar a imagem do projeto e decidiram que todas as famílias deveriam ser retiradas. Dias antes da solenidade de inauguração um funcionário do INCRA conhecido como Carlão comandou a desocupação violenta da área. Segundo seu Eucídio, antigo morador da região, “tocaram fogo nas casas e o pessoal tudo correndo de dentro de casa. Esse Carlão mandou tocar fogo e trator empurrando com gente, aquela coisa assim… deu dó.” As pessoas e objetos foram colocados em caminhões. Algumas foram levadas para os lotes distantes, outras foram deixados na margem da Transamazônica a alguns quilômetros de distância da cidade planejada em uma área conhecida hoje como Petezinho. Na antiga área de Vila Palha foi semeado arroz e na ocasião do evento de inauguração já havia um exuberante gramado verde que nada lembrava a existência de uma “favela” nos limites da cidade planejada.

Embora nada tenha sido oficialmente registrado, ainda é forte na região a memória sobre o “Massacre da Vila da Palha”. O projeto que prometia a redenção e a integração nacional deixou de ser prioridade do Estado brasileiro nos anos subsequentes à inauguração e os discursos oficiais se esforçaram em produzir um apagamento dos conflitos, desencontros e resistências durante sua implementação. Em 1988, a Rurópolis Presidente Médici se emancipou politicamente e tornou-se município preservando apenas o nome de Rurópolis. A antiga área ocupada pela Vila da Palha é hoje conhecida como os bairros periféricos da Serraria e do Leitoso, residência dos trabalhadores e trabalhadoras da cidade.

Rurópolis Presidente Médici.
Fonte: Revista Manchete, 17/08/1974.



Para saber mais:

  • BRAGA, Magno Michell Marçal. Construtores do Brasil grande: trabalho e trabalhadores na rodovia Transamazônica (1970-1974). Tese de doutoramento apresentada ao programa de pós-graduação em História contemporânea da Universidade de Coimbra, 2021.
  • MULLER, Fabiano Hector. O Processo de Construção da Rodovia Transamazônica e a formação de Rurópolis (1965 – 1978). Monografia de Graduação apresentada para a obtenção do título de Licenciatura Plena em História da Faculdade de Itaituba, 2008.
  • ARAUJO, Gilvan Santo; SAMPAIO, Maria de Fátima. Construção socioespacial de Rurópolis-PA. Secretaria Municipal de educação de Rurópolis. 2007.

Crédito da imagem de capa:  Família de migrantes e sua habitação de palha. Arquivo pessoal Fátima Sampaio


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LMT#101: Santa Bárbara (antiga Vila Operária da CBCA), Criciúma(SC)



Bruno Mandelli
Doutorando em História na UFRGS



Quem percorre hoje as ruas do bairro Santa Bárbara, Criciúma, cobertas de asfalto, não imagina que há meio século era uma vila operária de estrada de chão e repleta de casas de madeira. Foi neste bairro que uma das primeiras mineradoras de carvão foi fundada: a Companhia Brasileira Carbonífera de Araranguá (CBCA), no ano de 1913, pelo empresário carioca Henrique Lage. Entretanto, somente após o final da Primeira Guerra Mundial, no final da década de 1910, que a mineração de carvão se expandiu consideravelmente devido à escassez da importação do carvão inglês.

A fundação dessa empresa atraiu grande quantidade de operários. Eram imigrantes italianos, espanhóis, alemães, russos, tchecoslovacos, entre outros, mas também migrantes nacionais oriundos de regiões próximas, como pescadores ou agricultores do litoral sul de Santa Catarina, ou até mesmo de regiões mais longínquas, como o norte e nordeste do país. 

Logo, Criciúma tonou-se conhecida como a “capital brasileira do carvão”. Em 1946, a produção local do minério ultrapassou a do Rio Grande do Sul. O carvão extraído era, principalmente, destinado à recém-inaugurada usina da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ). A partir dos anos 1920, a cidade se expandiu em torno da indústria carvoeira. No final da década de 1940, a mão de obra estimada em toda região carbonífera era de cerca de 10 mil pessoas sendo que a população total do município de Criciúma era de cerca de 50 mil habitantes.

Desde os anos 1920, disseminaram-se vilas operárias por toda a cidade. Vila Próspera, Vila Operária Nova e Vila Mina do Mato são alguns exemplos desses bairros de trabalhadores mineiros que passaram a moldar a paisagem urbana de Criciúma. As vilas eram utilizadas como propaganda para atrair operários de outras regiões, em particular no contexto da Segunda Guerra Mundial, um período de grande crescimento da mineração. 

Uma das vilas mais importantes criada na primeira metade do século XX foi a Vila Operária da CBCA. As casas de madeira dessa vila eram disponibilizadas como parte do contrato de trabalho com a empresa, descontado o aluguel dos salários. Em geral, as casas eram muito precárias, de apenas 3 cômodos, pequenas e insalubres para comportar famílias numerosas. Nessa vila também foram construídos armazéns, escola, e farmácia. Da igreja de Santa Bárbara, construída no bairro em 1935, avistava-se a boca da mina de carvão onde os mineiros passavam boa parte de suas vidas.

O controle social dos trabalhadores era intenso na vila. Até hoje, antigos moradores se recordam da atuação de fiscais da empresa que rondavam as ruas para vigiar os trabalhadores. Em momentos de conflitos, como greves, por exemplo, eram comuns as ameaças de despejo e expulsão.


No entanto, as experiências comuns de exploração e precariedade (além da insalubridade das casas, eram frequentes a falta de água potável, bem como as enchentes) forjaram laços de solidariedade e uma cultura militante entre as famílias mineiras. Frequentemente, os espaços da vila possibilitaram a organização e reivindicação de melhores condições de moradia e aumentos salariais.


Várias foram as greves organizadas pelos operários da CBCA. Uma das mais emblemáticas aconteceu em outubro de 1952, quando os trabalhadores paralisaram suas atividades por um período de 15 dias. Iniciada na Vila Operária dessa empresa, essa greve se espalhou pelas demais mineradoras da região, resultando na interrupção geral de todas as minas do município. Apesar da oposição inicial do Sindicato, que preferia uma saída negociada e conciliatória com os patrões, a greve teve imenso apoio da comunidade. Com a tensão aumentando nas ruas de Criciúma, uma assembleia com cerca de dois mil trabalhadores acabou aprovou uma contraproposta patronal de aumento salarial que foi vista como uma vitória dos mineiros.

A partir de 1957, o Sindicato passou a ser dirigido por lideranças comunistas e trabalhistas, que construíram uma militância combativa tanto nos locais de trabalho quanto nas vilas operárias. No início de 1960 organizaram uma greve histórica de quase 30 dias, com a paralisação total das minas de carvão, reivindicando o pagamento da taxa de insalubridade. Nos anos seguintes as greves se intensificaram na capital do carvão, tornando-se mais frequentes e radicalizadas.

A repressão das forças conservadoras não tardou. Logo após o golpe de 1964, o Sindicato dos mineiros de Criciúma sofreu intervenção militar e teve cerca de cinquenta lideranças presas. Além disso, cerca de 1.500 pessoas da região carbonífera foram convocadas pela polícia política a prestar depoimento sobre  supostos envolvimentos com atividades consideradas subversivas. Foco de repressão e de resistência, a capital do carvão ficou marcada pelo golpe que transformou a cidade, suas relações de trabalho e sua vida política.

A partir da década de 1990, a maioria das minas de carvão foi sendo paulatinamente desativada. Atualmente a atividade continua sendo desenvolvida somente nos municípios vizinhos de Siderópolis, Treviso, Lauro Müller e Urussanga. Mesmo assim, a Vila Operária, que teve seu nome alterado para Santa Bárbara nos anos 1960, continua sendo um local de memória dos trabalhadores, relacionado tanto às lutas travadas no século passado quanto à religiosidade popular na crença da santa protetora dos mineiros.

 Extração de carvão mineral da Companhia Brasileira Carbonífera Araranguá (CBCA), 1917.
Acervo Arquivo Histórico Municipal Pedro Milanez


Para saber mais:

  • MANDELLI, Bruno. Das minas de carvão para a Justiça: as lutas dos mineiros acidentados de Criciúma/SC. Amazon.com.br eBooks Kindle: Das minas de carvão para a justiça: As lutas dos mineiros acidentados de Criciúma/SC, Mandelli, Bruno
  • BERNARDO, Roseli Terezinha; COSTA, Marli de Oliveira; OSTETTO, Lucy Cristina. A casa e a vila: a família operária e a moradia na região carbonífera (1913-1930). In: GOULART FILHO, Alcides (org.). Memória e cultura do carvão em Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2004.
  • CAROLA, Carlos R. Assistência médica, saúde pública e o processo modernizador da região carbonífera de Santa Catarina (1930-1964). São Paulo: FLCH/USP, Tese de Doutorado, 2004.
  • COSTA, Marli de Oliveira. Artes de viver: recriando e reinventando espaços – memórias das famílias da Vila Operária mineira Próspera Criciúma (1945/1961). Florianópolis, 1999. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Santa Catarina.


Crédito da imagem de capa: Vila Operária da CBCA , atual Santa Bárbara, início da década de 1950. Acervo CEDOC-UNESC


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#100: Companhia Nitro Química Brasileira, São Paulo (SP) – Paulo Fontes



Paulo Fontes
Professor do Instituto de História da UFRJ e coordenador do LEHMT/UFRJ



Sorridente, Getulio Vargas recebeu o buquê de flores das mãos de Yole Souza e ouviu atento as palavras de gratidão da jovem operária que, em seu nome e de suas colegas, agradecia a visita do presidente à fábrica onde trabalhavam. Era a tarde de 26 de abril de 1940 e Vargas participava da cerimônia de inauguração oficial da Companhia Nitro Química Brasileira no bairro de São Miguel Paulista, periferia leste da cidade de São Paulo. Após visitar as instalações da fábrica, ouviu o discurso de um dos dirigentes da empresa. José Ermírio de Moraes não apenas a agradeceu a visita, mas também enfatizou que a Nitro Química estaria “ao serviço devotado e constantes dos mais altos interesses econômicos e militares do Brasil”.

O apoio do governo havia sido fundamental para o empreendimento. Horácio Lafer e José Ermírio de Moraes, dois autointitulados “capitães da indústria” paulista, viram no fechamento de uma fábrica de raiom nos Estados Unidos, a oportunidade de construir um complexo industrial químico no país. Com o decisivo suporte de Vargas, que autorizou a isenção de taxas alfandegárias, dezoito mil toneladas de máquinas, equipamentos e estruturas foram transferidas da Virgínia para São Paulo. O bairro de São Miguel foi escolhido pela proximidade da ferrovia, do rio Tietê e pelo baixo custo dos terrenos para a instalação da planta fabril. Após dois anos de épica construção, a indústria começou a produzir.

A complexa produção do raiom, um fio sintético conhecido como “seda artificial”, então com largo uso comercial, permitia a fabricação de uma série de produtos químicos. Alguns deles de uso militar, o que certamente estimulou o apoio governamental. A Nitro, abreviação que logo se popularizou, era vista como um versátil complexo industrial que teria papel decisivo no progresso do país. O desenvolvimento industrial durante a II Guerra Mundial consolidou a Nitro Química como uma das maiores e mais lucrativas empresas brasileiras. Em 1946 já possuía quase 5 mil trabalhadores e esse número praticamente dobraria nos anos seguintes, quando os dirigentes da empresa elaboraram um ambicioso plano de expansão que visava tornar a companhia a “CSN do setor químico”.

Foi durante a guerra também que a Nitro edificou seu setor de “Serviço Social”, um grande aparato assistencial voltado para seus trabalhadores e suas famílias. Hospital, creche, clube esportivo, vilas operárias faziam parte de um sistema de benefícios propagandeado como missão de uma “indústria esclarecida e democrática com um capitalismo humano e progressista” a serviço dos interesses nacionais. O discurso empresarial usava largamente a noção paternalista de “família” em busca da “harmonia e paz social”.

Essa retórica, no entanto, era contrastada com um cotidiano de superexploração, baixos salários, alta rotatividade e despotismo das chefias. As condições de trabalho, em particular, eram motivo de reclamações e protestos por parte dos operários. A fábrica era famosa por sua periculosidade e insalubridade. Histórias sobre o uso de batatas nos olhos para “sugar os gases” expelidos nas seções fabris, o temor de explosões (como a de 1947 que oficialmente teria matado 9 operários) ou sobre os efeitos da poluição do ar e das águas (a Nitro foi uma das maiores poluidoras do Tietê) marcaram gerações de moradores de São Miguel.

A maioria dos trabalhadores da Nitro eram homens migrantes rurais, em particular de Minas Gerais e do Nordeste. Grande parte, negros e descendentes dos povos originários do sertão brasileiro. Havia setores da empresa, no entanto, de predominância feminina. Essa presença migrante, especialmente nordestina, caracterizou a empresa e todo o bairro. A São Miguel “dos baianos” foi a região de maior crescimento da cidade entre as décadas de 1950 e 70. Inicialmente eram atraídos pela Nitro, mas logo pelos loteamentos baratos onde suas casas eram autoconstruídas. O bairro simbolizou como poucos a expansão periférica de São Paulo.


Uma forte cultura comunitária, ancorada nas experiências migratórias e de classe, forjou uma tradição de organização sindical e política entre os trabalhadores da Nitro Química


Já em 1945, uma passeata de celebração pela vitória aliada na guerra desdobrou-se num quebra-quebra em que os operários destruíram carros de chefes identificados como integralistas. No ano seguinte, uma greve de grandes proporções paralisaria vários setores da fábrica pela primeira vez. Neste período, o Partido Comunista do Brasil (PCB) teve forte influência no Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo. A Nitro era a principal célula fabril do partido na cidade, sendo visitada por lideranças como Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella e Jorge Amado.

A cassação do PCB e a intervenção no sindicato em 1947, bem como a repressão no interior da empresa, refreou, mas não eliminou a mobilização operária na Nitro. Em 1956, agora sob a liderança de Adelço de Almeida, baiano, negro e comunista, o Sindicato dos Químicos passou a ter uma presença ativa na vida da fábrica e do bairro. Em 1957, na esteira da “Greve dos 400 mil”, os operários da Nitro paralisaram totalmente a empresa, naquilo que ficou conhecido como a “Batalha de São Miguel”. A partir de então, teriam participação decisiva nas mobilizações da efervescente conjuntura do início dos anos 60.

Com o golpe de 1964, os militantes sindicais foram cassados e perseguidos. Além disso, a Nitro, com o fracasso de seu plano de expansão, entrou em crise e demitiu quase 1/3 de seus empregados em 1966. Apesar disso, a companhia, parte do poderoso grupo Votorantim, sobreviveu e permaneceu como um importante empresa na cidade. Durante a redemocratização, a militância operária também se reergueu e a fábrica foi uma das principais bases da oposição que conquistou o Sindicato em 1983. Três anos depois, as denúncias sobre as péssimas condições de trabalho na Nitro tiveram um peso considerável na derrota de Antônio Ermírio de Moraes, proprietário da fábrica, nas eleições para governador de São Paulo.

A partir dos anos 1990, a empresa perdeu prestígio e poder econômico. Em 2011, após uma campanha que mobilizou moradores e organizações de São Miguel, o órgão municipal de preservação do patrimônio tombou algumas estruturas da fábrica. Nesse mesmo ano, o grupo Votorantim vendeu a empresa para um fundo de investimentos. Era o fim de uma era, apesar da fábrica continuar em funcionamento. A Nitro Química foi uma das principais fábricas da industrialização nacional-desenvolvimentista no país. Foi também um símbolo da força e da luta dos trabalhadores brasileiros no século XX.

Vista área da Companhia Nitro Química Brasileira, 1940.
Acervo do Centro de Memória Votorantim
Pavilhão de células de eletrólise da Nitro Química.
Acervo do Centro de Memória Votorantim


Para saber mais

  • FONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos. Nitro Química: a fábrica e as lutas operárias nos anos 1950. São Paulo: Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo/AnnaBlume, 1997.
  • FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2008.
  • PAIVA, Odair da Cruz. Caminhos cruzados. Migração e construção do Brasil moderno (1930-1950). Bauru: Edusc, 2004.
  • ROCHA, Antônia Sarah Aziz. O bairro à sombra da chaminé. Um estudo sobre a formação da classe trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira de São Miguel Paulista (1935-1960). Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1992.
  • TONAKI, Luciana Lepe. A Companhia Nitro Química Brasileira: indústria e vila operária em São Miguel Paulista. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2013.

Crédito da imagem de capa:  Trabalhadores da Nitro Química em um piquete durante a greve de 1957. Ao fundo, discursando, Adelço de Almeida. Acervo do Sindicato do Trabalhadores Químicos de São Paulo.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#99: Ponte Rio-Niterói, Niterói (RJ) – Pedro Campos



Pedro Campos
Professor do Departamento de História da UFRRJ



A ponte Rio-Niterói, que liga as cidades do Rio de Janeiro e de Niterói, foi uma das principais obras realizadas durante a ditadura brasileira. Construída entre os anos de 1969 e 1974, em pleno “milagre econômico”, a ponte tem o nome oficial do ditador Artur da Costa e Silva. Foi um dos principais símbolos do “Brasil Grande”, projeto nacionalista do regime. O empreendimento guarda várias marcas da ditadura, como a participação de militares na direção dos trabalhos, o beneficiamento de empresários afinados ao regime, o reforço do modelo rodoviário de transportes e a superexploração do trabalho, com particular negligência em relação à saúde e segurança dos trabalhadores.     

A ditadura brasileira foi responsável por algumas obras de grande porte, usadas largamente como peças de propaganda. A publicidade do governo explorava de forma ufanista a realização de projetos como a rodovia Transamazônica, a usina termonuclear de Angra dos Reis, a hidrelétrica de Itaipu e a ponte Rio-Niterói. A ponte, construída na antiga capital e em um dos mais famosos cenários do país, tinha uma particular visibilidade e sensibilidade política para a ditadura. Além disso, eram privilegiados os investimentos rodoviários, associados às empresas multinacionais automotivas e às empreiteiras de obras públicas, responsáveis pelas obras das estradas de rodagem, dentre outros serviços de engenharia.

A proposta de uma união física entre as cidades do Rio e de Niterói era antiga, sendo que os primeiros projetos de túneis e pontes unindo os dois lados da baía de Guanabara remontam ao século XIX. Em 1968, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) desenvolveu um projeto de uma ponte unindo as duas cidades, em uma via que contabilizava um total de 13,9 quilômetros, sendo 8,9 km sobre as águas da baía. A obra teve financiamento britânico, com fornecimento de aço especial para a construção do vão central. O projeto foi à concorrência pública e a obra teve início em 1969.

O primeiro consórcio, formado por construtoras brasileiras, começou a realizar a obra, mas encontrou dificuldades diversas, dentre as quais algumas derivadas da falta de estudos mais detalhados sobre as condições de construção e, principalmente, de escavação do fundo da baía de Guanabara para a instalação das fundações como os tubulões. Os recorrentes atrasos no cronograma da obra provocavam irritação no governo e preocupação com potenciais desgastes políticos. Com as dificuldades acumuladas pelo consórcio, ele foi dispensado e o conjunto de empresas que ficou em segundo lugar na licitação foi chamado para gerir a obra, que passaria a ser dirigida por uma empresa pública, a Empresa de Construção e Exploração da Ponte Presidente Costa e Silva, conduzida por um militar, em regime de administração.

Cerca de 10 mil operários trabalharam na construção, além de 200 engenheiros. Era o auge da ditadura e as condições de trabalho eram precárias e sem o atendimento dos itens básicos de segurança. Os acidentes eram frequentes e, só em um deles morreram mais de dez trabalhadores. De acordo com o jornalista Romildo Guerrante, “morreram vários operários. Em um dos acidentes, eu me lembro bem, morreram 12 pessoas, inclusive um engenheiro. O acidente foi no dia 25 de março de 1970, ou seja, um ano após o início das obras.” Oficialmente faleceram 33 funcionários ao longo da construção, mas existem relatos de até 400 mortes, em especial na edificação dos pilares da ponte.


Em plena Baía de Guanabara, a construção da Ponte Rio-Niterói escancarava o outro lado do “milagre” e da propaganda governamental num momento em que o país batia recordes mundiais de acidentes de trabalho.


A maior parte dos trabalhadores era composta por homens jovens, negros e mulatos, muitos dos quais migrantes nordestinos. Os salários variavam conforme o grau de especialização do operário, girando em torno de um a dois salários mínimos entre os operários com menos instrução. Muitos deles trabalhavam em determinados projetos e eram demitidos após a entrega do empreendimento, havendo outros que atuavam em partes específicas da obra. Obra estratégica, teve especial atenção da ditadura, com um sistema de disciplina, vigilância e controle particularmente intenso sobre as ações e trabalho dos operários. Eventuais conflitos, brigas e desavenças eram rapidamente reprimidos pela direção militar do empreendimento.

A ponte Rio-Niterói foi inaugurada em março de 1974. Na cerimônia de lançamento da obra, o ministro dos Transportes do governo Médici, coronel Mário Andreazza, teceu loas à ponte como um “monumento à Revolução de 1964” e em um reconhecimento implícito das péssimas condições e dos frequentes acidentes de trabalho, exaltou a “dedicação e competência do operário brasileiro, cujo ânimo, até nas horas mais dramáticas, jamais arrefeceu, tendo ao contrário, saído fortalecido dos reveses próprios de obra de tamanha envergadura”. 

A Rio-Niterói é hoje um importante meio de acesso entre as cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro, tendo diariamente o tráfego de milhares de veículos. Apesar da facilidade que a via gera para o transporte entre as cidades da região, a sua construção lembra um dos períodos mais violentos e autoritários da história brasileira, sendo seu nome uma homenagem ao ditador que determinou a edição do AI-5. Assim, o empreendimento parece colocar a questão da política de memória e, em particular, a querela da revisão dos nomes de logradouros e monumentos existentes em locais públicos, dado que em muitos casos, como diz a letra do samba, “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”.

Operários durante construção da Ponte.
Foto de Sebastião Marinho. Agência Globo 
Visão geral da construção da Ponte Rio-Niterói no início dos anos 1970. Fonte: http://tudosimehistoria.blogspot.com/2017/05/curiosidades-da-construcao-da-ponte-rio.html


Para saber mais:

  • CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar brasileira, 1964-1988. Niterói: Eduff, 2014.
  • COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Operário da Construção Civil: urbanização, migração e classe operária no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.
  • LUCENA, Felipe. “História da construção da ponte Rio-Niterói”. Portal eletrônico: Diário do Rio. Disponível no endereço: https://diariodorio.com/historia-da-construcao-da-ponte-rio-niteroi/
  • RAUTENBERG, Edina. “Veja e a ponte Rio-Niterói: a cobertura da revista sobre a construção da ponte”. In: Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina: imperialismo, nacionalismo e militarismo no século XXI. Londrina: UEL, 2010.
  • SILVA, Ana Beatriz Barros. Corpos para o Capital:acidentes de trabalho, prevencionismo e reabilitação profissional durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Jundiaí: Paco, 2019

Crédito da imagem de capa: Operários comemoram a colocação do último vão da Ponte Rio-Niterói em 1973. Foto: Rodolpho Machado. Agência O Globo


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#98: Fábrica da Volkswagen do Brasil, São Bernardo do Campo (SP) – Marcelo Almeida de Carvalho Silva



Marcelo Almeida de Carvalho Silva
Professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ



A rodovia Anchieta é conhecida pelos enormes congestionamentos de carros em feriados prolongados, uma vez que é a estrada que faz a ligação entre a capital paulista e a região praiana de Santos. Mais do que uma via de acesso ao litoral, a estrada abriga diversas indústrias, em particular no município de São Bernardo do Campo. Entre elas, aquela que foi a maior planta industrial da história brasileira, a fábrica da Volkswagen do Brasil (VWB), localizada no quilometro 23,5 da rodovia.

Desde sua entrada no Brasil em 1953, a Volkswagen funcionava em um galpão alugado na rua do Manifesto, no bairro do Ipiranga em São Paulo onde montava os veículos com peças trazidas da Alemanha. Inicialmente fora dos planos da matriz alemã, a construção da fábrica em solo brasileiro só foi confirmada após mudanças na política de incentivos governamentais e do empenho do então Presidente Juscelino Kubitschek. A implantação da indústria automobilística na região do ABC paulista foi uma das peças centrais do chamado Plano de Metas do seu governo e propagandeada como uma representação do progresso e modernidade do país.

Assim, em 1956 teve início da construção da grandiosa planta de fabricação de carros em um terreno de mais de 1 milhão de m2 às margens da rodovia Anchieta, estrategicamente escolhida por facilitar o escoamento da produção e transporte de matéria prima. Menos de um ano depois, em 1957, a fábrica começou a produzir kombis e em 1959, no mesmo ano em que passou a produzir carros de passeio, foi oficialmente inaugurada.

Desde então, o que se viu foi um crescimento da produção de veículos que transformou a Volkswagen na maior empresa do setor automobilístico brasileiro. A relevância da fábrica aumentou após o golpe de 1964, já que a empresa se engajou no projeto de crescimento econômico promovido pelo governo federal estabelecendo metas de aumento da produção no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Se, em 1964 o total de trabalhadores da empresa não passava de 10 mil, em 1971 já eram 27 mil. Ao longo daquela década a fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo chegou a empregar mais de 40 mil trabalhadores, em sua esmagadora maioria homens, em grande parte migrantes nordestinos e de outras regiões do país. O principal produto da fábrica, o popular Fusca, tornou-se um dos principais símbolos do “milagre econômico” da ditatura brasileira.


No chão da fábrica, a grandiosidade da Volkswagen tinha uma outra face. Seus operários eram submetidos a um cotidiano de superexploração, acidentes de trabalho e vigilância permanente.


Não por acaso, muitos associavam o despotismo fabril da empresa ao passado de colaboração da Volkswagen com o nazismo. De fato, Franz Stangl, responsável pelo setor de monitoramento e vigilância da fábrica nos anos 60, foi comandante do campo de concentração de Treblinka. Denunciado em 1967 por Simon Wiesenthal, conhecido como o “caçador de nazistas”, foi preso e extraditado para a Alemanha. Outros dirigentes alemães da empresa também haviam tido ligações com o Partido Nazista.

As ações de militantes políticos e ativistas sindicais eram amplamente vigiadas e reprimidas pela empresa. O departamento de segurança industrial da Volkswagen era uma extensão dos órgãos de repressão, compartilhando informações, relatórios de vigilância e até mesmo fichas funcionais de seus trabalhadores com o DOPS, a polícia política. Em 1972, por exemplo, os membros de uma célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na empresa foram presos graças à estreita colaboração do departamento de segurança industrial da VWB com os órgãos de repressão do governo. Lucio Bellantani, um dos líderes da célula foi detido, agredido e torturado no pátio da fábrica.

A violência e repressão, no entanto, não impediram que os trabalhadores da Volkswagen se constituíssem em um dos principais núcleos do chamado “novo sindicalismo”. Tiveram participação central nas greves metalúrgicas do final dos anos 1970 e início dos 1980, fundamentais no processo de redemocratização do país. Em 1982, foi criada a Comissão de Fábrica dos Trabalhadores da VWB. Além disso, lideranças operárias da Volkswagen, como Devanir Ribeiro, Mario Barbosa, Luís Marinho, Wagner Santana, entre outros, têm tido um papel destacado no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na CUT e na vida política do país em geral.

A ação sindical, mas também as profundas transformações tecnológicas da própria empresa e do mercado automobilístico do país alteraram bastante a planta Anchieta, como a fábrica de São Bernardo do Campo é conhecida. Depois do ápice dos anos 1970, o número de empregados diminuiu até chegar nos atuais 8 mil e duzentos trabalhadores (cerca de 10% deste total são mulheres). A robotização e novas formas de gestão também alteraram o perfil do trabalho e dos operários. A produção foi diversificada nas quatro fábricas que hoje a Volkswagen possui no Brasil, mas, apesar das ameaças de desindustrialização da região do ABC paulista, a planta Anchieta mantém-se como a maior da empresa.

O passado, no entanto, ainda pesa sobre a grande fábrica de São Bernardo do Campo. Em 2015 foi aberta uma representação pública contra a VWB por violação dos direitos humanos de seus trabalhadores durante a ditadura. Cinco anos depois a empresa assinou um acordo com o Ministério Público, pelo qual reconheceu as violações, pagou indenizações e estabeleceu políticas de reparação. O processo contra a Volkswagen do Brasil tornou-se histórico e foi um importante passo na luta pelo direito à verdade, justiça e memória no Brasil.

 Trabalhadores da Volkswagen em assembléia em São Bernardo do Campo durante a greve dos metalúrgicos de 1979.
Foto Juca Martins.
Legenda: Construção da Fábrica da VWB na via Anchieta, a primeira fábrica da empresa fora da Alemanha
Fonte: https://autoentusiastas.com.br/2015/11/novembro-1959-inauguracao-fabrica-anchieta-volkswagen/



Para saber mais:

  • SALES, Telma Bessa. Trabalho e reestruturação produtiva: o caso da Volkswagen em São Bernardo do Campo. São Paulo: Annablume, 2002.
  • HUMPHREY, John. Fazendo o “milagre”: controle capitalista e luta operária na indústria automobilística brasileira. Petrópolis: Vozes, 1982.
  • NEGRO, Antonio Luigi. Linhas de montagem: o industrialismo automotivo e a sindicalização dos trabalhadores (1945-1978). São Paulo: Boitempo, 2001.
  • SILVA, Marcelo A.C. “A expansão da Volkswagen do Brasil baseada em políticas econômicas e alinhamento ideológico”. In: Campos, P.H.P; Brandão, R.V.M e Lemos, R.L.C.N Empresariado e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Consequência 2020.
  • Filme Documentário: Cúmplices? – A Volkswagen e a Ditadura Militar no Brasil (Komplizen? – VW und die brasilianische Militärdiktatur). Direção Stefanie Dodt e Thomas Aders. (2017). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1iWmAmvNMNg

Crédito da imagem de capa:  Troca de turno dos trabalhadores da Volkswagen na década de 1970. Acervo da Volkswagen do Brasil (reprodução)  


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#97: Fábrica e vila operária Rheingantz, Rio Grande (RS)- Caroline Matoso



Caroline Matoso
Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul



A primeira empresa têxtil do  Rio Grande do Sul se estabeleceu no município de Rio Grande em 1873, sendo conhecida popularmente como Fábrica Rheingantz. A indústria atraiu migrantes de regiões rurais e de imigrantes europeus que viam nela uma oportunidade de emprego. Assim como outras tecelagens do período, em 1884 a Rheingantz criou uma vila operária no entorno de sua fábrica visando garantir uma mão de obra estável. Além de casas de moradia, a vila contava com creche e escola primária, salão de festas, biblioteca, corpo de bombeiros, clube cultural, restaurante, mercearia, assistência médica e pecuniária.

Em 1879, a empresa do imigrante alemão Carlos Guilherme Rheingantz já contava com 900 operárias(os) e 100 costureiras que trabalhavam em suas residências. Em 1907, estava entre as 100 maiores indústrias do Brasil com 1.008 trabalhadoras(es).

De um lado, a vila operária facilitava o controle social. Os moradores eram constantemente vigiados e situações de seu cotidiano familiar eram frequentemente reportadas aos mestres da empresa, sendo passíveis de punições. Por outro, a vila era também um espaço fundamental de sociabilidade e formação de identidades, redes de solidariedade e ajuda mútua entre os trabalhadores.

A fábrica e sua vila também ocupavam um espaço importante na geografia social de Rio Grande. Suas sirenes para as trocas de turno ecoavam por toda a cidade e são até hoje lembradas. Nas memórias das(os) operárias(os) da empresa, um dos pré-requisitos para adquirir moradia na vila operária era ser “chefe de família”, o que, na prática, excluía as mulheres trabalhadoras.

As mulheres formaram a maioria da mão de obra da Fábrica Rheingantz durante todo o seu período de funcionamento. As operárias se encontravam sobretudo na seção da tecelagem. No entanto, cargos como contramestre e mestres de sessão eram ocupados exclusivamente por trabalhadores do sexo masculino, em geral alemães e seus descendentes.

A operária Soeli Botelho, por exemplo, comenta que começou a trabalhar na Fábrica Rheingantz aos 14 anos de idade, em 1947. A tapeçaria, seção no qual trabalhou até os 18 anos, era destinada apenas ao trabalho de crianças. A produção de tapetes era um setor importante da fábrica e os menores de idade recebiam a metade do salário destinado a um trabalhador adulto.

A feminização do trabalho industrial têxtil foi um fenômeno internacional comum entre os séculos XIX e XX. Em entrevistas realizadas com trabalhadoras(es) da empresa, estas associavam o fato de haver mais mulheres na sessão de tecelagem pela característica do trabalho exigir paciência, sendo uma tarefa monótona. Estas trabalhadoras eram em sua maioria brasileiras de regiões próximas a fábrica e, em 1932, quando o trabalho feminino noturno foi proibido por lei, a empresa realizou campanhas de recrutamento de tecelões em Pernambuco. 


O controle e disciplinamento dos(as) trabalhadores (as) também eram estritos no interior do espaço fabril. Comportamentos considerados inadequados, como risadas e conversas eram punidos com descontos salariais e até demissões. Mas também eram comuns diferentes formas de resistências dos(as) operárias no processo produtivo. Muitas vezes as máquinas eram propositadamente quebradas ou desligadas antes da sirene tocar, fios eram estragados e eram recorrentes as brigas e discussões com os mestres e feitores


A cidade de Rio Grande foi palco de intensas lutas sociais. Durante muito tempo foi conhecida como a “cidade vermelha”. A primeira notícia de movimentações grevistas no município data de 1890, quando as tecelãs da Fábrica Rheingantz paralisaram o trabalho, reivindicando a demissão de um inspetor da empresa pelos maus tratos dispensado às(os) operárias(os). Desde então, o movimento operário e a participação das mulheres foi se fortalecendo. Uma das figuras importantes na história do movimento operário de Rio Grande é a tecelã da Fábrica Rheingantz, Angelina Gonçalves, que foi brutalmente assassinada pela polícia durante uma manifestação no 1º de maio de 1950. Angelina Gonçalves era militante do Partido Comunista do Brasil (PCB), e desde fins da década de 1940, uma das lideranças da União das Mulheres-Riograndinas.

No anos 60, a Fábrica Rheingantz passou por um período de crise financeira e administrativa, com constantes atrasos do pagamento dos salários das(os) trabalhadoras(es). Não conseguindo se reerguer e mergulhada em dívidas de indenizações trabalhistas, a empresa decretou sua falência em 1968. Dois anos depois, a empresa reabriu com novos donos, intitulando-se Inca Têxtil, permanecendo funcionando parcialmente até 1990.

Diante das tentativas dos antigos proprietários da empresa de desapropriação das residências na vila operária, em 2009 ocorreram audiências públicas para debater a regularização das casas operárias. Durante as audiências iniciou-se um debate que envolveu diversos setores da sociedade de Rio Grande sobre a patrimonialização da fábrica e da vila operária Rheingantz.. 

Em 2012, o prédio da Fábrica Rheingantz e a vila operária foram tombados pelo IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico do Estado -, conservando-se sua estrutura física e preservando a memória de um espaço laboral no qual parte dos habitantes de Rio Grande desenvolveram sua infância, adolescência e vida adulta. Recentemente, a Innovar Incorporações, proprietária da  fábrica desde 2012, assinou um termo de intenção com a Universidade Federal de Rio Grande (FURG) para a implementação de um museu e de um acervo histórico naquelas antigas instalações fabris.

Operárias trabalhando na sessão de tecelagem da Fábrica Rheingantz.
Fonte: Informativo da Indústria Walling, 1957. 
Vila operária da Fábrica Rheingantz.
Acervo Biblioteca Pública de Rio Grande, início do séc. XX


Para saber mais:

  • COSTA, Vanessa Avila. Procura-se objetos e memórias da Fábrica Rheingantz: uma exposição arqueológica digital. Biblioteca Pública de Pelotas, 2020. Disponível em: http://museuhistoricobpp.com.br/index.php/2020/07/28/procura-se-objetos-e-memorias-da-fabrica-rheingantz/
  • FERREIRA, M. L. M. Os fios da memória: a Fábrica Rheingantz, entre o passado, presente e patrimônio. Horizontes Antropológicos, ano 19, n. 39, 2013.
  • FERREIRA, M. L. M.  Os três apitos: memória coletiva e memória pública, Fábrica Rheingantz, Rio Grande, RS, 1950-1970. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.
  • MATOSO, Caroline D; LEDERMAN, Luana S. A resistência das operárias da fábrica Rheingantz aos métodos punitivos: Transgressões no ambiente Fabril (Rio Grande 1920-1968). Revista Ars Histórica nº19, 2019.
  • MATOSO, Caroline Duarte. As Marias que tecem o amanhã : fiando a existência e tramando a resistência na fábrica Rheingantz (Rio Grande, 1920-1968). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.

Crédito da imagem de capa:  Fábrica Rheingantz no início do século XX. Acervo Biblioteca Pública de Rio Grande, início do séc. XX 


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT# 96: Casa da Cajá, São Félix (BA)- Walter Fraga



Walter Fraga
Professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano



A cerca de seis quilômetros do centro da cidade de São Félix, no Recôncavo Baiano, na margem direita do rio Capivari, encontra-se um dos mais antigos terreiros de candomblé da Bahia. A casa de oração foi construída às margens do rio e por isso ficou conhecida como Candomblé do Capivari. O cenário impressiona pela beleza, o rio, as árvores que envolvem a casa de culto e as montanhas. A árvore sagrada, uma centenária cajazeira, brota de dentro do próprio terreiro, daí que o lugar é também conhecido como a Casa da Cajá.

Não muito longe do terreiro, a cerca de trezentos metros, podemos ainda avistar as ruínas do aqueduto que movia a moenda do antigo Engenho Natividade. Segundo a tradição oral, um escravo chamado Anacleto Urbano da Natividade foi o fundador da casa de culto a Obaluaiê, o orixá da cura e das doenças.

A conquista do território sagrado teria acontecido durante uma grande epidemia ocorrida na região. Na ocasião, Anacleto Urbano teria curado centenas de pessoas, inclusive membros da família dos seus senhores. Em retribuição, teria sido concedido ao curandeiro a permissão para construir a casa de oração e cura em terras do engenho. A fama de curandeiro correu por toda região e mesmo depois da grande epidemia, pessoas de várias partes da província continuaram a procurá-lo. E realmente até o início do século XX, anualmente, no dia de São Roque, romeiros de várias localidades da Bahia ainda recorriam ao terreiro de Anacleto, mesmo após sua morte. Possivelmente a tradição oral se refira a epidemia de varíola que grassou na Bahia em 1889.

O engenho era propriedade da influente família Tosta, que além da riqueza em terras e escravos era intensamente envolvida com a política no Segundo Império. Em 1856, quando se fez o inventário da proprietária Joana Maria da Natividade Tosta apurou-se que o engenho possuía cerca de 4 mil tarefas de terras, parte delas dedicadas ao plantio de cana-de-açúcar. Foram inventariados 137 escravos, 68 homens e 69 mulheres. Destes, 42 cativos eram africanos, os demais crioulos e mestiços, ou seja, nascidos no Brasil.

A propriedade tinha várias construções, entre as quais uma casa de engenho de fabricar açúcar, casa de purgar e de alambique, casa de bagaço e tanque de mel. O conjunto se completava com seis casas de telha arruinadas, provavelmente servindo de senzalas. Próximo a estas construções, erguia-se a casa-grande, um sobrado com pavimento térreo e andar superior onde residiam os proprietários. Segundo os antigos moradores, dentro do sobrado havia um oratório onde os senhores realizavam cerimônias religiosas católicas, casamentos e batismos dos filhos dos escravos.

Na lista dos escravos anexa ao inventário localizamos o famoso curandeiro, o mesmo que aparece na memória e ainda é venerado pelas famílias de santo das cidades de São Félix e Cachoeira. Na lista ele aparece registrado como Anacleto, crioulo, dezesseis anos, “aprendiz de ferreiro”. Esta evidência contradiz a tradição oral que afirma que Anacleto Urbano era africano. Mas havia entre os escravos listados um africano chamado Urbano, maior de quarenta anos, trabalhador na lavoura e com ofício de fornalheiro, “afetado de cansaço”, ou seja, sofrendo de alguma doença respiratória. Provavelmente Urbano era pai de Anacleto.

Pela tradição oral pode-se perceber que ele atuava como elo de ligação entre a casa grande e a comunidade da senzala. Conta-se que tinha grande capacidade de negociar e influenciar as decisões dos Tosta no sentido de modificar a sorte dos parceiros escravos, especialmente dos que fugiam ou dos que não desejavam que seus filhos e filhas fossem transferidos ou vendidos para outros engenhos.


Após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, muitos ex-escravos permaneceram nas propriedades em que nasceram ou viveram cativos. Mas não ficaram por submissão ou dependência. As motivações para permanecerem nos locais eram outras e seguiam uma lógica que os próprios libertos traçaram para as suas vidas. Muitas vezes a permanência nos locais estava ligada à defesa do direito que haviam adquirido durante o cativeiro de continuarem a ter acesso às roças. Para a família de Anacleto a permanência foi também ditada por obrigações religiosas com o lugar.


No Engenho Natividade, muitos continuaram cultivando pequenos lotes de terras mediante o pagamento de arrendamento. Trabalhadores libertos trabalhavam alguns dias da semana para a família Tosta e em compensação recebiam pequenos lotes para cultivar mandioca e outros gêneros que eram comercializados nas feiras de São Félix e Cachoeira. Muitas famílias de ex-escravos continuaram vivendo da renda de pequenos lotes de terras e foi assim que emergiram do cativeiro.

No início do século XX, a comunidade em volta do terreiro formada por remanescentes das famílias de antigos trabalhadores escravizados foi se diversificando e agregando pequenos lavradores, pescadores e ferroviários. Uma escola primária acolhia crianças de toda a redondeza. Ao longo do século, o terreiro da Casa da Cajá foi o território de uma comunidade que resistiu às investidas dos antigos senhores de reaverem aquela parcela da fazenda e também às diversas investidas da polícia contra o terreiro de candomblé.  Ainda hoje, é celebrada a festa católica de São Roque, que acontece paralelamente ao culto de obaluayê, o orixá da cura.  

O terreiro da Casa da Cajá simboliza tanto a luta pela terra como pela liberdade religiosa e é um fundamental lugar de memória da cultura negra e dos/as trabalhadores/as da Bahia.

Casa grande do  Engenho Natividade, onde residiam os proprietários (cerca de 1950).
Acervo de Walter Fraga.


Para saber mais:

  • Edilece Souza Couto, Marco Antônio Nunes da Silva e Grayce Mayre Bonfim Souza (org.). Práticas e vivências religiosas. Temas de história colonial à contemporaneidade luso-brasileira. Salvador: Edufba/Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2016.
  • Edmar Ferreira Santos. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador: Edufba, 2009.
  • Luís Nicolau Parès. A formação do candomblé: história e ritual de nação jeje na Bahia. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006.
  • Onildo Reis David. O inimigo invisível. A epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: Edufba, 1996.
  • Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

Crédito da imagem de capa:  Fotografia da Casa da Cajá. A árvore brota de dentro do terreiro. Fotografia de Walter Fraga, 2008.


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