“Sob uma luz satânica”: leituras argentinas da Formação da classe operária inglesa – Cristiana Schettini e Martín Albornoz

“Sob uma luz satânica”: leituras argentinas da Formação da classe operária inglesa
Cristiana Schettini (Brasil)
Professora da Universidad Nacional de San Martin e pesquisadora do Conicet,Argentina
Martín Albornoz (Argentina)
Professor da Universidad Nacional de San Martin e pesquisador do Conicet, Argentina
Nossas primeiras leituras de A Formação da classe operária inglesa foram realizadas na Argentina e no Brasil, respectivamente, durante a década de 1990. Fomos movidos por uma incipiente curiosidade historiográfica que começava a se manifestar em meio às muitas urgências políticas das primeiras décadas da volta à democracia nos nossos países. Devoramos o livro com ansiedade, como se fosse uma espécie de oráculo para pensar o mundo “a partir de baixo”. Nossas expectativas juvenis organizaram a leitura entusiasta de um texto que, por vezes, se tornava hermético para quem, como nós, estava longe de dominar a literatura, a religiosidade, a história e a geografia da Inglaterra dos séculos XVIII e XIX. Queríamos saber como era isso de captar o processo histórico em movimento, e como era possível combinar a história social nas suas determinações e materialidade com sonhos e expectativas de grupos que não receberam mais que condescendência da posteridade. Para nós era urgente compreender como tomou forma o antagonismo de classes numa sociedade capitalista e como uma parte da humanidade foi desumanizada.
Três décadas depois, como professores de pós-graduação, nos propusemos a revisitar essa leitura no âmbito de um curso de pós-graduação intitulado “Problemas de História Social”. Motivou-nos tanto a lembrança da euforia pela descoberta de Thompson quanto a preocupação com leituras habituais da obra na Argentina. Tínhamos a sensação de que os significados atribuídos ao adjetivo “thompsoniano” estavam relacionados com a repetição de leituras rápidas que, na maioria das vezes, se reduziam ao famoso Prefácio e ao capítulo “Exploração”. De nossa parte, pensamos que um curso com o objetivo de recuperar os debates da história social ao longo do século XX era uma excelente oportunidade para reler A Formação, não mais para estudar a história inglesa, ou a revolução industrial, ou mesmo o processo de formação da classe operária, mas para pensar como fazer história na Argentina de hoje. O desafio de ler esta obra monumental in extenso nos obrigou a reorganizar o programa da matéria. Também nos obrigou a refinar argumentos para convencer nossos estudantes a trocarem o ritmo vertiginoso da leitura e discussão de capítulos isolados de diferentes autores por semanas de aulas concentradas num único autor, um único livro, um único assunto. Tentamos transmitir aquelas expectativas juvenis. Meio temerosos, prometemos que se nos deixássemos levar pela sucessão de capítulos, com inevitáveis interrupções para consultar nomes, datas, referências, mapas e imagens na Internet, não só entenderíamos a narrativa épica da classe, mas seríamos recompensados com a revelação do mistério de como abarcar o processo histórico no seu devir. Correndo o risco de soar já não vintage, mas diretamente démodé, garantimos a nossa audiência jovem, interessada em outras políticas e assuntos, que havia algo de extremamente valioso no olhar marxista de Thompson sobre a história social. Para nossa surpresa, a proposta foi recebida, ano após ano, com um misto de perplexidade e entusiasmo.

Depois de cinco anos de repetir a experiência de ler as quase mil páginas que compõem o texto, com uma pandemia no meio, o resultado também nos surpreendeu. Reler A Formação no início do século XXI, numa Argentina sempre em crise, continua sendo produtivo e inspirador. Em parte, achamos que isso se deve ao contexto da nossa leitura. Por um lado, porque compartilhamos um clima desafiante de perseverança, de enfrentar uma tarefa que, a certa altura, se tornava árdua. Em algum momento, todos nós, professores e estudantes, algumas nascidas depois da morte de Thompson em 1993, confluíamos na leitura em voz alta dos versos enigmáticos de Blake, andando pela cidade com exemplares cada vez mais sublinhados e anotados do livro. Alguns de nós se deixavam levar pela sedutora retórica thompsoniana, enquanto outros começavam a perguntar-se por que continuávamos lendo se já tínhamos compreendido a ideia central. Á medida que o semestre ia passando, quase todos íamos escolhendo as nossas frases e imagens preferidas, referências que condensavam o poder literário de Thompson e o impacto de seus argumentos. Reconhecíamos expressões como “Eis a cabeça de um traidor”, como si fôssemos seguidores de “curiosas sociedades” e seitas. Rastreamos a onipresença dos espiões, a melancolia do velho jacobino, a imoderação das conspirações, as “fortalezas de Satanás” e o anonimato ludista.
Logicamente, os sucessivos grupos de alunos não hesitaram em apontar os conhecidos silêncios e as ausências na obra. Este fato não é surpreendente, tendo em conta que se trata de um livro publicado em 1963. Faz décadas que se discutem como as mulheres, os irlandeses e os sujeitos coloniais foram tratados nestas páginas ou deixados de fora delas. Nós mesmos propomos na segunda parte do programa da disciplina interlocuções possíveis da obra de Thompson. Prestamos atenção às críticas feministas, lideradas por Joan Scott, e às abordagens da história social global a partir dos trabalhos de Marcus Rediker e Peter Linebaugh. Também buscamos relacionar a trajetória pós-livro de Thompson com os seus contemporâneos da micro-história italiana e os seus diálogos com Natalie Zemon Davis no auge da produção de história social que floresceu na década de 1970. Por fim, abrimos espaço para outros usos criativos, como o da produção brasileira sobre a escravidão, a partir das reflexões de Silvia Lara. No contexto dessas leituras, independente de nossas intenções, a busca por ausências foi dando lugar aos efeitos coletivos do exercício da leitura atenta na identificação de fios menos óbvios na trama argumental. Um número impressionante de assuntos, inter-relações e encontros se conectava com a epopeia da formação da classe. Em vez de ausências, as muitas presenças começaram a chamar a nossa atenção. O texto não era rico “apesar” do seu marxismo, mas com ele. Começamos a pensar como a sua forma de investigar e escrever história ecoava na formulação do problema histórico de autores que podem não se considerar “thompsonianos”, e nem sequer “marxistas”. Ao ensiná-los, e a nós, a pensar historicamente e a praticar o ofício da investigação de formas que podem estar muito longe do seu foco de preocupação original, A Formação nos permite revisitar suas próprias hierarquias, crenças e convicções e a nossas, alimentando muitas outras histórias.
Queremos destacar um dos efeitos inesperados que terminaram dando sentido à nossa proposta: a surpresa que a sutileza e a sofisticação da leitura que Thompson fez da literatura e dos registros policiais gerou em nós, como grupo. Nem os alunos nem nós pensávamos que seus usos dessa documentação histórica heterogénea na construção da famosa história a partir de baixo geraria tanta discussão. Fomos muitas vezes levados a debruçar sobre essas fontes, a lê-las por cima dos ombros de Thompson. Até, em algumas ocasiões, conseguimos aproximá-las à nossa própria experiência. Vimos, por exemplo, o programa de televisão em que Thompson lê e comenta fragmentos de William Blake; circulamos uma edição digital de Shirley de Charlotte Brontë; ouvimos um hino ludista interpretado pelo grupo anarquista inglês Chumbawamba no seu álbum English Rebel Songs 1381-1914. Com estes exercícios, a alteridade inicial deu lugar a novas camadas de leituras e à produção de novos significados. Acima de tudo, nos confrontamos com um dos ensinamentos centrais de A Formação sobre a “agência histórica” dos “de baixo”: a operação de os encontrar – sejam esses “de baixo” quem forem – é inseparável de uma perspectiva de leitura dialógica e relacional de qualquer fonte. Esta operação é resumida num dos seus ensinamentos que mais entusiasmavam os grupos de estudantes: se queremos saber que pensavam o “alegre marinheiro” e a “moça de Sandgate” sobre a Autoridade e os metodistas; se queremos entender “a vida na taberna” e as “atitudes sociais” de criminosos, marinheiros e soldados, temos que expor a documentação “a uma luz satânica”, lê-la “às avessas”.
Em suma, mais do que reviver a narrativa épica do livro, esta experiência de leitura coletiva nos aproximou da sua arquitetura interna; dos seus caminhos não percorridos, mas vislumbrados; dos fios soltos de uma história centrada na classe que se espraia para outros problemas. Ao pensá-lo como uma peça antiga cuja potência deve ser redescoberta através de hábitos de estudo desusados, mas repletos de possibilidades, pensamos ter contribuído para construir um terreno comum longe de ortodoxias, propício à retomada da discussão, que felizmente permanece aberta, sobre o lugar da classe e das tradições marxistas na história social.
